1984 (português)

Agora que se via como um homem morto, tornava-se importante continuar vivo o maior tempo possível. Dois dedos de sua mão direita estavam sujos de tinta. Era exatamente o tipo de detalhe que podia entregar uma pessoa. Algum fanático enxerido do Ministério (uma mulher, talvez, alguém como a mulher de cabelo ruivo ou a moça de cabelo preto do Departamento de Ficção) podia ficar intrigado e começar a se perguntar por que ele havia passado o intervalo do almoço escrevendo, por que teria usado uma caneta antiquada, o que teria escrito — e depois soltar alguma insinuação no local adequado. Foi até o banheiro e removeu cuidadosamente a tinta dos dedos com o sabonete marrom-escuro, um sabonete que raspava a mão como uma lixa e que, portanto, atendia muito bem a seus propósitos.

Guardou o diário na gaveta. Não fazia sentido pensar em escondê-lo, mas ele podia ao menos garantir que a eventual descoberta de sua existência não lhe passasse despercebida. Um fio de cabelo atravessado na extremidade das páginas era óbvio demais. Com a ponta do dedo, recolheu um grãozinho identificável de poeira esbranquiçada e o depositou num canto da capa, de onde certamente cairia se alguém mexesse no caderno.


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